sexta-feira, 2 de novembro de 2012

El Cazador - Revancha

          Miguel acordou sobressaltado. Estava em um quarto branco, o local era frio e mal iluminado. Olhou para a esquerda e viu uma bolsa de soro conectada ao seu braço, estava em um hospital. Sentou-se na cama e seu corpo inteiro foi possuído por uma dor infernal. Tentou se levantar, mas foi puxado de volta para a cama. Seu sofrimento era tamanho que sua visão embaçou. Olhou para a direita e depois de alguns segundos entendeu que estava algemado à cama. – Mierda!
          Logo um medico entrou no quarto, surpreendeu-se ao encontrar o paciente acordado. – Que bom que você acordou. – Disse de maneira tranquilizadora. – Você apresentava um quadro grave quando chegou a nossas mãos, estava em choque e com uma grande dificuldade respiratória. – Fez uma pausa esperando que o paciente falasse algo, mas como não obteve resposta continuou. – Também estávamos preocupados com o seu estado mental, afinal não é todo dia que se tem a chance de lutar com uma fera e sobreviver para contar a historia.
          O medico não sabia o quão errado ele estava, mas resolveu poupar sua energia – á...gua. – Estava com a boca tão seca que sentiu a garganta arranhar com o esforço.
          - É claro. Me desculpe a distração. – Disse enquanto pegava um copo d’agua no outro estremo do quarto. – Bem, vamos falar sobre a sua situação agora. – O tom descontraído havia sumido. – Meu nome é Richard, pode me chamar de Rick, fui eu quem te acompanhou durante esses três dias.
          - Três dias?!
          - Você ficou desacordado por quase oitenta horas. Seu corpo sofreu vários pequenos traumas, quando tiver tempo percebera varias cicatrizes, apesar de algumas parecerem antigas. Mas o problema mesmo foi a imensa laceração no lado direito de seu abdômen. Poucas pessoas sobrevivem a um ferimento desse porte, você é uma pessoa de sorte. Quanto aos ossos, todos estão milagrosamente intactos. – Miguel olhou para seu braço algemado e novamente para o medico. – Ah, sim, sobre isso... Vou avisar ao detetive Finley que você acordou, ele vai explicar a situação. – Quando o medico saiu do quarto, o caçador notou que havia um policial de vigia na porta.

          Alguns minutos se passaram até que o detetive entrou no quarto. – Então quer dizer que a bela adormecida finalmente acordou. – O sarcasmo de Finley fez com que Miguel saísse do estado letárgico em que se encontrava. – Não quero saber se esse povo idiota te considera um herói, pra mim você não passa de um criminoso.
          - Criminoso?
          - Eu sei, eu sei, você é o único que viu o maldito tigre e sobreviveu. Mas não pense que isso vai ser o bastante para se safar. Isso não quer dizer nada! Você é um maldito cagão que assustou o bicho com meia dúzia de tiros.
           - Esquece a parte do criminoso então e vamos voltar pra parte onde eu realizo meu sonho de virar herói. - Ironizou
           - Agora você é comediante além de herói, né?
           - Mas eu achei que você tinha dito que eu não era herói.
           - Vamos ver se você vai continuar sendo o “senhor engraçadinho” depois que eu te prender por trafico de armas.
           - Calma ai, irritadinho, eu acabei de acordar e já vou ser preso por algo que não fiz. – Talvez não tivesse sido uma ideia muito boa provoca-lo daquele jeito.
           - Se não foi trafico então me explica isso. – Pegou um saco de evidencias com sua arma dentro. – Ela esta com o numero de serie raspado e nós apreendemos dúzias iguais a essa entrando pela costa do Texas e desvendamos uma operação que já vem acontecendo a messes. Mas como sempre só pegamos peixes pequenos. – Fez uma pausa para o acusado poder absorver tudo. – Para mim você cheira a um minúsculo dourado. Se você nos ajudar a chegar nos “cabeças” da operação podemos mudar sua acusação para porte ilegal. E se falarmos que você ajudou no caso sua pena deve ficar de um a três anos com direito a condicional por bom comportamento em sete messes. O que você acha? – Silencio. – Que tal começarmos com uma pergunta simples? Quem te vendeu essa arma? – Silencio. – Olha, eu estou tentando ser razoável. Me diga o que eu quero saber e você só volta a ver minha cara feia no tribunal quando eu for te defender. Então vai cooperar?
          - Não sei nada sobre essa operação da qual você está falando. 
          - De quem você comprou essa mal-di-ta arma?
          - Não te in-te-res-sa!
          - Você acabou de acordar, ainda está confuso com tudo o que tem acontecido. Pela manhã eu vou voltar e se você continuar mentindo serei obrigado a te prender. Antes de eu ir embora, como disse que era seu nome mesmo?
          - Vou te ensinar uma coisa: essa tática do policial bom e policial mau só funciona com duas pessoas. – Esqueceu totalmente da prudência, a arrogância de Finley o havia tirado do sério.
          - Filha da... Amanhã eu volto, é bom que você não teste minha paciência. – Virou-se para o policial de guarda. – Se ele resolver abrir o bico me chame na mesma hora.
          Apesar da dor ainda ser agoniante, em poucos minutos o caçador havia bolado um plano de fuga. – Ei, amigo. – O guarda o encarou. – Eu preciso usar o banheiro.
          - Deve ter um penico ao lado da cama. – Voltou a fazer a vigilância da bunda de uma das enfermeiras.
          Aproveitando a distração, Miguel afastou o penico sem fazer barulho. – Está meio longe, você não pode pega-lo para mim? – Irritado por ter sido tirado de seu entretenimento, o policial pegou o penico e o deixou cair de qualquer jeito aos pés do ferido. – Obrigado. – Virou-se sem se comover pelo agradecimento. – Ei, amigo. – Antes que pudesse entender o que acontecia, Miguel o agarrou pela cabeça e acertou seu rosto com o joelho. Seu corpo inteiro doeu com o esforço.
          Revistou o guarda e rapidamente encontrou a chave das algemas. Se libertou e esfregou os pulsos. Seu corpo latejava. Trocou as vestes hospitalares pelo uniforme policial e algemou o guarda a cama e o amordaçou. – Obrigado. - Deixou um bilhete dizendo que a farda poderia ser recuperada em uma lavanderia a duas quadras de seu hotel. Saia do quarto quando percebeu que havia algo em cima da mesa, Em seu ataque de raiva, Finley havia se esquecido de levar o saco de evidencias com a arma dentro. Pegou sua arma e pegou um taxi na saída lateral do hospital, precisava ser rápido.
 *** 
          Terminara sua ligação. A tarde ainda estava começando e já havia resolvido quase todos os seus problemas. Havia trocado de roupa no hotel, deixado o fardamento na lavanderia e pago um taxista para ficar a sua disposição o dia inteiro. Além disso, acabara de ligar para o prefeito exigindo que a policia local parasse de perseguir seu agente disfarçado da segurança nacional. Com toda a burocracia e segredos da segurança nacional era bem capaz que ganhasse uns dois dias de vantagem em relação a Finley, tempo mais que suficiente para sumir do mapa.
          Também havia pesquisado os estranhos acontecimentos de três dias atrás e agora tudo fazia mais sentido. Puck era um dentre os muitos nomes de uma fada da colheita irlandesa. É raro que seres sobrenaturais se manifestem longe de sua terra de origem, isso explicava porque não havia ouvido falar de criatura parecida.
          Puck tem o poder de assumir varias formas, sendo as mais conhecidas um corcel negro com uma luz fantasmagórica saindo de sua boca, um coelho todo negro e um corvo-humanoide, similar a um Tengu. Ele costuma confundir viajantes para que eles se percam e utiliza um violino para atrai-los. Mas se estiver de bom humor pode lhe ajudar ou até mesmo contar o futuro. O dia primeiro de Novembro é conhecido como dia do Puck, nesse dia todos os agricultores deixam parte de suas colheitas como tributo à fada em troca de boas colheitas.
          Assim o mistério havia acabado. Miguel havia encontrado um monumento em homenagem a Puck, que seria o motivo pelo qual ele havia aparecido no Texas. E os ataques haviam começado no dia dois de Novembro, logo após o dia de Puck. Certamente a fada não havia recebido os tributos devidos.
          - Odeo las hadas. – Disse para si mesmo. Elas são muito imprevisíveis e emotivas. Irritam-se facilmente e guardam rancor por toda a eternidade. O pior era que não havia jeito comum de mata-las, cada uma necessita de um ritual ou método especifico para serem destruídas, e aquelas como Puck, muito poderosas, tinham o péssimo habito de derrotar os caçadores. Existia um único método para enfraquecê-la, destruir seus templos e monumentos. E como aquela não era sua região de origem, o caçador apostava que ela não poderia manter-se lá se a estatua fosse destruída. Agora tinha que descobrir quantos monumentos existiam na cidade e quão danificada estava a estatua que havia atacado. – Aprenda uma coisa, amigo. – Disse para John, o taxista. – Não importa o quão poderosa é a caça e nem o quão suicida é a caçada, um caçador não para até ver sua presa abatida. – Riu. Ainda se sentia um pouco grogue com o efeito dos analgésicos.
 *** 
          Estava parado em frente à casa na qual encontrara a estatua. Havia pedido a John que ficasse esperando a alguns metros dali, não queria deixar rastros. O caçador estava munido de sua inseparável faca de prata, sua pistola (novamente municiada), um grande martelo e algo mais (uma ferramenta reserva que talvez fosse necessária).
          Tocou a campainha e logo foi atendido por um homem. – Ora, eu me lembro de você. É aquele turista que sobreviveu ao ataque da fera. – Disse com um claro sotaque irlandês.
          - Isso mesmo. Queria me desculpar pelo estrago que fiz no seu jardim. – Disse Miguel.
          - Que isso, meu filho, o jardim nem está tão ruim assim e a culpa é da fera. Você pode seguir seu rumo sem peso na consciência. – Respondeu o doce fazendeiro.
          - Então me deixe fazer uma pergunta. Você já ouviu falar de Puck? – Perguntou surpreendendo o homem.
          - Claro, é um antigo folclore de minha terra. Se estiver interessado posso lhe contar algumas estórias.                
          - Obrigado, mas eu conheço bem essas historias. Acredito que você saiba que possui uma estatua do Puck em seu jardim.
          - Sei sim, eu mesmo mandei construir para ter uma colheita melhor.
          - Então você também sabe que para sua colheita ser favorecida é necessário um tributo, uma parte de seus rendimentos.
          - Olha, meu filho, eu não sei o quão forte esse bicho bateu na sua cabeça, mas isso é só superstição. Esse ano tivemos muitos problemas. A colheita parecia boa, porém algumas semanas atrás tudo murchou. Eu fui um dos poucos sortudos que conseguirão salvar um mínimo para se manter. Você acha que eu ia fazer oferendas a alguém q nem me ajudou esse ano?
          - Vou te explicar duas coisas então. Enquanto você tiver aquela estatua no seu jardim e mantiver os tributos em dia, sua colheita, por pior que esta seja, se sobressairá à dos outros. E nunca assuma acordos que você não estiver disposto a cumprir.
          - Vou te dar um desconto por causa do que você passou, mas não estou gostando do seu tom de voz. Te dou apenas um conselho, não leve essa coisa de contos de fadas tão a sério.
          - O senhor pode me dizer isso depois que a merda de uma fada irlandesa quase partir seu corpo ao meio, pois um velho idiota não quis pagar o preço de seus serviços! – Estava difícil de raciocinar com a cabeça entupida de remédios.
          - Agora já basta! Se você já terminou a lição pode ir embora. – Virou de costas sem esperar resposta. – Era só o que me faltava, um maluco que acredita em fadas.
          - Uma ultima pergunta. – Havia conseguido retomar a compostura. – Existem outros fazendeiros que possuam monumentos a Puck.
          - Não, eu sou o único irlandês por essas bandas. – Respondeu carrancudo.
          - Acho que esqueci de comentar, mas antes de ir embora eu tenho que terminar de destruir a estatua. Não posso arriscar que ela faça mais vitimas.
          - Saia daqui antes que eu chame a policia!
          - Acho melhor o senhor se acalmar antes que alguém se machuque. – O caçador havia sacado sua arma. – Que tal entrarmos para podermos conversar melhor?
          Entraram na casa e Miguel habilmente amarrou e amordaçou o fazendeiro a uma cadeira. E o posicionou de modo que pudesse ver a estatua por uma janela. – Desculpa, amigo, mas é o único jeito de você acreditar. – Disse enquanto saia da casa empunhando o grande martelo que havia trazido.
          O caçador ainda estava a vinte metros da estatua quando ouviu o galope da fera maldita a sua direta. Correu em direção a estatua e logo conseguiu enxergar a pequena fissura que havia feito dias antes. Decidiu que começaria por ali.
          Forçou suas pernas e seus braços ao máximo e acertou um poderoso golpe no meio da rachadura, criando grandes ranhuras por toda a figura. Gemeu de dor e teve que se apoiar no monumento para não cair. Deu mais dois golpes, que não causaram nem metade do dano que o primeiro havia feito, e concluiu que era hora de recuar antes que fosse pisoteado pelo cavalo demoníaco. Largou o martelo e correu na direção oposta ao galopar.
          Olhou para trás, a fada logo o alcançaria. Empunhando a pistola em uma mão e a faca na outra, se virou e encarou o bicho. Descarregou o municiador na direção do animal e apesar deste não ter sido atingido por nenhum tiro, sua velocidade diminuiu. Puck hesitou ao perceber que o hábil caçador não havia errado os tiros, seu alvo era a estatua.
          Aproveitando-se da distração, Miguel abriu um grande talho em sua pata mais próxima. Logo em seguida voltou a correr para o monumento. Quando se virou na direção do caçador, a fada já não era mais um cavalo, e sim um enorme felino. Mas a fera se surpreendeu novamente, o caçador havia ignorado a estatua e agora corria para fora da propriedade. Puck não o deixaria fugir, era muito tarde para perceber o erro que havia cometido ao confrontar a fada. Retomou a perseguição, mas foi arremessado para trás por uma explosão.
          Quando a fera se levantou, agora pouco maior que um tigre normal, encontrou o caçador, com um sorriso debochado no rosto e o martelo na mão, no meio de uma área devastada. Ele estava com o pé sobre um pedaço de pedra no formato de bico. Só então entendeu o que havia acontecido, o desgraçado havia explodido seu monumento e aquele pedaço de pedra era a única coisa que restara. – Maldito seja, Miguel! Nunca ouse colocar seus pés imundos em minha terra! Lá eu sou poderoso! A única coisa que lhe espera na Irlanda é uma morte lenta e dolorosa em min... – Não teve chance de terminar, pois o caçador havia transformado o fragmento em pó.
          Ignorou toda a dor que sentia, não tinha tempo a perder. Libertou o fazendeiro e apesar de todas as perguntas que lhe eram feitas seguiu correndo, ou o mais próximo de correr que conseguia, em direção ao taxi. – Some daqui John! Se a policia me pegar de novo não vai ser fácil de escapar. – Finley havia acertado em uma coisa, a cidade o considerava um herói. E ele havia se aproveitado disso para ganhar o apoio do taxista.
          - Para o hospital, chefe? Seus ferimentos estão todos abertos.
          - Depois eu cuido disso. Vamos para o hotel, eu tenho que guardar minhas armas.
          - Mas o que você fez, chefe? Eu ouvi uma explosão.
          - Derrotei a fera.
          - Venceu a fera! – Exclamou o incrédulo taxista. – Mas como? Você estava todo quebrado hoje de manha!
          - Com uma granada. – Gargalhou e logo foi acompanhado pelo motorista. Aquela semana havia sido surreal até para o experiente caçador. Depois de guardar as armas no carro disse para John leva-lo ao hospital e desmaiou no carro.

2 comentários:

  1. tão aqui minhas fontes pra esse capitulo de El Cazador.
    http://en.wikipedia.org/wiki/Púca
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Pwca
    http://www.irelandseye.com/paddy3/preview2.htm

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